Nos corredores da edição mais recente do 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o jornalista e cineasta Gil Pedro ouviu comentários que, para ele, soaram quase inacreditáveis. Pouco depois da sessão do curta-metragem Rock Ceilândia — Periférico e coletivo, concorrente ao Candango na mostra digital, encontrou espectadores espantados com a descoberta de que a cena musical da região administrativa mais populosa do Distrito Federal — com cerca 365 mil habitantes — não respira apenas hip-hop e forró. “As pessoas perguntavam: mas Ceilândia não é a capital do grafite, do rap? Pode parecer impressionante, mas há bandas de rock com 15 anos de estrada que são totalmente desconhecidas fora da cidade”, observa o diretor.
Márcio, dos Maltrapilhos, João Frajola, do Terno Elétrico, Alexandre Medeiros, do QZera, Cilene Tyler, do Bonecas de Trapo, Raiane Gonoli, do Bonecas de Trapo, Anderock, do Atritus, André, do Vitalógica |
Ainda que sem o alcance do hip-hop, o rock exerce tremores subterrâneos na cidade. Entre os músicos, é unânime a impressão de que a cena passa por um momento de entusiasmo. Ainda assim, eles enfrentam antigas dificuldades: a carência de um circuito de shows, a escassez de incentivos (públicos e privados), a sensação de isolamento em relação ao centro do DF. “Em meio a todos os problemas, estamos resistindo. Há festivais que reúnem 4 mil pessoas”, observa Márcio, vocalista do punk Os Maltrapilhos. Há 15 anos no batente, o quarteto já se apresentou no Porão do Rock (em 2006) e teve CD lançado em Portugal. “No início da banda, era tudo precário: ninguém tinha instrumentos, a gente ensaiava no fundo do quintal. O pai reclamava que não aguentava mais o barulho”, lembra.
Ao lado do quarteto de blues-rock Terno Elétrico, que lançou o disco de estreia em 2009, Os Maltrapilhos é o nome mais conhecido do documentário. Divide a cena com bandas como Barbarella, Body in Flames, Atritus, Whisky 74, Guariroba Blues, Vitalógica, 9 Milímetros e Os Homi Rapaz Si Minino. Entre elas, predomina o espírito de coletividade e o gosto pelos sons pesados — do punk ao hard rock — e por versos que espelham o cotidiano. Curiosamente, a vocação para o protesto revela um certo parentesco com o hip-hop made in Ceilândia. “Escuto muito Câmbio Negro, Cirurgia Moral, Racionais. Assimilo as letras, o tom de indignação”, afirma Márcio, 34 anos.
Ao combate
Para João Frajola, vocalista do Terno Elétrico, 40 anos, a atitude combativa está no DNA do rock ceilandense. “Talvez o diferencial esteja aí”, observa. Ainda assim, aprendeu a conviver com o estranhamento provocado sempre que o grupo afirma a origem. “Quando falávamos que somos uma banda de rock de Ceilândia, as pessoas nos olhavam um pouco diferente. Na nossa música, tentamos mostrar a cidade, mas sem cair no panfletário”, resume. Uma das canções do grupo, Avenida H. Prates, narra as impressões de um personagem que atravessa a principal via da região. “A cidade produz rock de qualidade. O que falta é se espalhar, promover intercâmbio, sem bairrismo”, aposta.
Confira trechos do documentário Rock Ceilândia - Periférico e coletivo
De forma independente e com teimosia, o circuito roqueiro se espalha na programação de dois bares (Garagem Cultural e Cio das Artes) e em festivais como o já tradicional Ferrock, o Rock na Veia e o Rock na Rua. “O rock é uma bandeira, um instrumento forte, socialmente falando”, comenta o produtor do evento, Ari de Barros, em cena do documentário. Com cartazes que combinam Woodstock com Che Guevara, o Ferrock prega a “revolução do rock” desde 1986. É inspiração para promessas como o Bonecas de Trapo, trio de punk e grunge formado só por meninas, em atividade desde 2004. “Para uma banda de rock de Ceilândia, é difícil até receber pagamento. Quem toca hip-hop e forró ganha cachê. Para o rock, nada. Mas queremos crescer”, diz a vocalista Deydi. O barulho, pelo visto, não vai cessar.
Produto interno bruto
Conheça algumas bandas que estão no documentário Rock Ceilândia
Os Maltrapilhos
» Sob influência do punk, a banda combina o peso do gênero com uma artilharia de versos indignados. “Nutridos pela revolta e manifestados pelo ódio”, como avisam no MySpace, eles têm dois discos gravados: Desemprego e desespero, de 2006, e Descaso, de 2008. Ouça em www.myspace.com/osmaltrapilhos.
Terno Elétrico
» Com doses generosas de blues e rock ‘n’ roll, o quinteto Terno Elétrico ligou a tomada em 1992 — mas só lançou o primeiro disco este ano. “O rock sempre teve força em Ceilândia. Mas muitas bandas pararam por não verem um caminho”, comenta o vocalista João Frajola. Ouça em www.myspace.com/ternoeletrico.
Bonecas de Trapo
» O nome veio da música Rag doll, do Aerosmith, mas a banda inspira-se principalmente na fúria grunge de Hole, L7 e Nirvana. Com boa experiência de palco, Deydi, Cilene e Raiane arrepiaram marmanjos no Ferrock e pelo 1º Festival Nacional de Punk Feminino (em Goiânia, em 2006). No momento, gravam músicas em estúdio caseiro. Ouça em www.myspace.com/bonecasdetrapo.
Atritus
»A batida punk pulsa violentamente no som da banda — mas o tempero é bem-humorado. Formado no começo de 2004. Os “cinco loucos” escrevem versos que vão do protesto à esculhambação. Invadem a internet muita “cachaça, mulher e rock ‘n’ roll”. Ouça em www.myspace.com/atritus.
Vitalógica
»Em faixas como A volta e Conspiração, o quarteto usa riffs de hard rock para embalar versos que mostram influência de rock dos anos 1980. A banda tem no currículo participação em cooperativa de rock e em projetos de música em escolas. Ouça em www.myspace.com/bandavitalogica
Correio Brasiliense